Não sei quê

Muitos poemas, de várias línguas, chegam a esse tema peculiar, que Augusto Meyer chamou de “Não sei quê”. O que está por trás dele é a tentativa de expressar o inexpressável. O ensaio de Meyer, como sempre, é uma obra de arte, um não sei que de beleza e erudição.

Portinari: Retrato de Augusto Meyer. 1937.

Hoje, ao folhear alguns livros, deparei-me com o ensaio “Não sei quê” de Augusto Meyer, presente na coletânea Ensaios escolhidos de Alberto da Costa e Silva, originalmente publicado em A chave e a máscara.

“Não sei quê” é um motivo literário, exercido por inúmeros poetas em inúmeras línguas, e apenas Augusto Meyer, o mais erudito e profundo dos críticos brasileiros, poderia reuni-los num ensaio breve.

A expressão linguística, que usamos inadvertidamente na linguagem do dia a dia, em poesia pode ganhar sentido místico, pois resulta na impossibilidade de se exprimir qualquer coisa por meio de palavras. É a expressão poética do inefável.

O crítico começa nos apresentando o tema em Angelus Silesius, já o associando ao amor: “Eu amo só uma coisa e não sei o que é”. Damaso Alonso, que recebe o epíteto de “Nosso grande mestre”, transcreve uma “copilla” de São João da Cruz, que glosa o tema associando-o não mais ao amor terreal, mas ao divino:

“Por sola la hermosura
nunca yo me perderé,
sino por um no se qué
que se halla por ventura”.

Camões, claro, não ficaria de fora, pois a tópica foi comum nos séculos XVI e XVII, dos quais Camões é uma das principais fontes. Meyer cita umas das líricas…

Aquele não sei que,
que aspira não sei como,
que, invisível saindo, a vista o vê,
mas para o compreender não acha tomo

…um dos sonetos:

Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dói não sei porquê.

… e mais uma das canções:

Um não sei quê, suave, respirando, causava um admirado e novo espanto

Coleta uma ocorrência em Boscán: “Dulce gostar de um no sé qué sin nombre” e Tasso: “non so che confuso”. Em ambos, a tentativa de exprimir o inefável do amor. Em Camões, não apenas o inefável do sentimento, mas também o inefável daquela que o inspirou.  Aliás, o famoso soneto “Amor é fogo que arde sem se ver” nada mais é, segundo o crítico, do que uma variação do “Não sei quê”, uma extensão da tentativa de exprimir o inefável amoroso, lição do dolce stil nuovo.

Meyer ainda explora o tema em Racine, na Nouvelle Heloise, em Chateaubriand, em La Rochefoucauld, no gauchesco José Allonso y Trelles, até mesmo em Baudelaire, quando o francês trata da beleza como uma manifestação no campo do vago: “Quelque chose d’ardent et de triste, quelque chose d’un peu vague”.

E como era um grande leitor de Pascal, Meyer não deixaria de encontrar o tema também nos Penseé, ao tratar da vaidade humana, para a qual, se a quisermos compreender, deve-se buscar as causas e os feitos do amor: “A causa é um não sei quê […] e os efeitos são espantosos”.

Para o crítico, o motivo pelo qual o tema se encontra em tantos poetas é relativamente simples. O pensamento medíocre, de alcance limitado, define o objeto com clareza, assentado no campo fácil das definições, no campo da aparência superficial das coisas. Também a intuição poética limitada parece se dar bem em encaixar, nos fáceis meios expressivos, a fácil e enganosa claridade das formas superficiais. Em outras palavras, a definição precisa do mundo só é possível com a sua simplificação, com a combinação de uma limitada expressão e um limitado pensamento.

Porém – ressalta o crítico –, quando se aguça o pensamento cognitivo, ou quando a estesia poética se afina cada vez mais, “começa a aparecer a complexidade das cousas”. O que parecia simples, torna-se complexo, nebuloso, de difícil definição quando refinamos a capacidade expressiva e o pensamento. O poeta se depara com a limitação dos meios expressivos, com a incapacidade de definir tudo pela linguagem, abarcando toda a complexidade do misterioso, do místico, do não passível de expressão na simples tópica do “não sei quê”.

Comecei o texto dizendo que folheava hoje, aletoriamente, uns meus livros antigos. Eis que, coincidentemente, abro um livro que aparentemente não tem nada a ver com o ensaio de Augusto Meyer, o estudo “A rima na poesia de Carlos Drummond” por Hélcio Martins. É o melhor trabalho sobre a rima em Drummond, estudo essencial para entendermos não só o poeta, mas também o fenômeno da rima em si. Mas o que me leva a citá-lo é um verso colhido por Martins ao falar de aliteração, um verso de São João da Cruz:

“un no sé qué que queda balbuciendo”.

É um achado de Hélcio, que mais encanta quando o compara ao verso de Cruz e Souza do poema Lésbia:

“Ri, ri risadas de expressão violenta”.

Cruz e Souza nos faz rir de verdade ao repetir a sonoridade do poema, da mesma maneira que o outro Cruz reforça o balbuciar por meio da sequência aliterante de “que”. O “não sei que” desdobra o conjuntivo em três, dando a impressão de gaguejo, atravancamento, dificuldade de expressão. Aliás, esse “Não sei quê” também se associa ao tema religioso:

“Ao comentar este verso o próprio João da Cruz explica-nos que o no sé qué é ‘um altíssimo entender de Dios, que no se sabe decir, que por eso lo llama no sé qué”; e, mais adiante, que “le quedan las criaturas balbuciendo, porque no lo acaban de dar a entender; que eso quiere decir balbucir, que es ablar de los ninõs, que es no acertar a decir y dar e entender que hay que décir’. A aliteração dos três que dá portanto maior complexidade ao significante balbuciendo”.

A constatação de Meyer, a de que a capacidade cognitiva apurada e a apurada sensibilidade poética implicam crise na linguagem, lembrou-me a famosa frase de Schiller (citada por Anatol Rosenfeld): “Quando a alma fala, já não fala a alma”. Algo em nós é puro e intocável, desmancha-se assim que o tentamos exteriorizar; o poeta resguarda o “Não sei quê” de qualquer interferência.  

O “Não sei quê” é, paradoxalmente, a exteriorização do que não pode ser exteriorizado.

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