Descrever é um ato político

Neste texto veremos como a descrição é mais do que uma técnica literária. Ela tem implicações políticas e estéticas, diz muito sobre a mentalidade de uma época e tem sido preocupação de grandes teóricos da literatura.

Gustave Flaubert, Anton Tchekhov, Georg Lukács, Jacques Ranciere, Francine Prose

A descrição pode parecer uma simples e natural ferramenta narrativa, mas, como toda técnica, ela não é neutra. É o que demonstra Georg Lukács no ensaio Narrar ou descrever, para quem devemos compreender a necessidade social da técnica: “a valoração estética não pode ser mecanicamente separada da dedução histórica”.

Ele chama a atenção para o fato de que, até o séc. XVIII, a descrição sempre foi um elemento secundário no romance, ao passo que, no séc. XIX, em escritores como Flaubert e Zola, ela passou a elemento central da narração, ganhando autonomia. A motivação para essa mudança, segundo o autor, só poderia ser de ordem sócio-histórica.  

O princípio norteador de Lúkacs consiste na crença de que não se pode narrar bem sem uma concepção de mundo. Por isso, em escritores comprometidos com os acontecimentos políticos nas épocas de profundas mudanças, como Tolstói, Balzac, Stendhal, Walter Scott e Goethe, a descrição aparece organicamente atrelada à narração, submetida ao caráter épico da narrativa. A participação se impõe à observação, da mesma forma que o narrar se impõe ao descrever, resultando em romances cuja matéria é a ação do homem, ou, em outros termos, a práxis humana: “Só a praxis humana pode exprimir concretamente a essência do homem”. Sem abarcar a praxis humana, não é possível representar literariamente a experiência humana.

Já escritores como Zola, Flaubert e os irmãos Goncourt, por exemplo, impotentes pessimistas numa fase posterior de um capitalismo já estabelecido, ao invés de participantes, eram expectadores de sua época. Tal fato os incapacitava de representar a práxis humana. O resultado dessa concepção é a descrição autônoma, descolada da narração, os quadros descritivos apartados da estrutura geral do romance, não mais orgânico em seus elementos constitutivos. “O predomínio da descrição”, diz o filósofo, “não é apenas efeito, mas também se torna causa: causa de um afastamento ainda maior da literatura em relação ao significado épico”. Perde-se o caráter épico da narrativa, perde-se a capacidade de se dar forma à essência humana.

Se a narração hierarquiza, a descrição nivela. Se a narração, com o senso de um final (leia-se O sentido de um final, de Frank Kermode), tem a capacidade de selecionar e hierarquizar as ações de uma vida, filtrando os acontecimentos essenciais capazes de representá-la, a descrição, por sua vez, desconhece hierarquizações, não distingue os fatos importantes, nivela homem e objeto. Ao analisar o descritivismo de autores como Adalbert Stifíer, Lúkacs nota que a lama das botas de Napoleão ganha a mesma importância do soldado abatido por bala, pois ali se descreve com a mesma insistência os elementos essenciais e os assessórios.  

Mais recentemente, o filósofo Jacques Rancière, no artigo O efeito de realidade e a política da ficção, também ressaltou a importância política da descrição. Se Lúkacs, assumindo um ponto de vista negativo, dizia que a descrição nivela todas as coisas, Rancière parte desse fato para explorar o princípio democrático da técnica descritiva. Mas o autor contra o qual Rancière se insurge não é Lúkacs e sim Roland Barthes e o conceito de efeito do real.  

Mais uma vez Flaubert é o plano de fundo do problema. Roland Barthes, analisando a novela Um coração simples, destaca a gratuidade de alguns pormenores descritivos. Como estruturalista, não admitia um elemento desmotivado na estrutura; por isso, desejava dar uma função à superfluidade de algumas descrições. A solução encontrada foi dar à descrição o poder de verossimilhança, a função de conferir um efeito de realidade à narração. Se André Breton, por exemplo, reclamava da descrição de Dostoievski em Crime e castigo, cujo cenário do assassinato é descrito como um quarto com papel de paredes amarelo, sem haver qualquer motivação para tal detalhe de cor, a lógica de Barthes seria a de que o amarelo do papel de paredes reforçaria o realismo da narrativa.

De fato, o romance realista rompia a organicidade da narração com longos quadros descritivos e pormenores desmotivados, mas Barthes não teria percebido a importância política desse acontecimento, não teria enxergado que “O efeito de realidade é um efeito de igualdade”.

Entre os contemporâneos de Flaubert, aponta Rancière, havia a percepção de um claro rompimento com o romance clássico e com a organicidade da composição, na qual as partes o todo se ligavam numa relação hierárquica. O rompimento da organicidade trazia em seu bojo a descrição desmotivada: “Nas caixas do novo romancista todas as coisas estão embaralhadas”. Como Lúkacs, Rancière percebe nesse rompimento uma causa política; porém, diferente do filósofo alemão, para quem o descritivismo era sinal de uma época alienante e fetichizante, o filósofo francês percebeu marcas de uma época democrática: “Outro crítico daquele tempo observou a significação política dessa maneira de escrever: isto é democracia, ele disse, democracia na literatura ou literatura como democracia”.  

A organicidade da narrativa fazia parte do mundo hierarquizado da nobreza, inerente ao romance dos tempos monárquicos e aristocráticos, de hierarquia social estratificada. A insignificância dos detalhes do romance realista é, pois, fruto da igualdade, para o qual todos os detalhes são importantes: “a relação estrutural entre as partes e o todo fundamentava‑se numa divisão entre as almas da elite e as das classes baixas. Quando essa divisão desaparece, a ficção se entope de eventos insignificantes”.

O que abalou o quadro de estabilidade do romance foi a ascensão social do plebeu. Ele é representado pela camponesa Emma Bovary, pelos provincianos Lucien de Rubempré e Julien Sorel, entre outros. A figura paradigmática é a do plebeu que se tornou imperador da Europa, Napoleão Bonaparte, cuja imagem representava a nova ordem político-econômica, graças a qual a importância social podia ser almejada pelo talento, pela inteligência, pela vontade, não mais pelo nascimento ou pelo sangue. A descrição deslocada do fluxo narrativo é a manifestação perceptiva de uma classe social que, desde o começo do século XIX, ocupava os espaços de circulação dos signos, entre os quais a literatura.

A implicação política do ato de descrever não é, obviamente, a única abordagem possível. Em tempos de cursos de formação de escritores e oficinas criativas, destaca-se mais o aspecto técnico da descrição, como um dos principais elementos caracterizadores da trama, sobretudo quando explorada sua capacidade individualizante. Ao invés de quadros descritivos, valoriza-se a descrição do pormenor, acatando o apelo de Nabokov: “devemos reparar nos detalhes e acariciá-los”, pois o pormenor teria a capacidade de atingir mais profunda e diretamente o leitor.  A narração, portanto, é encarada do ponto de vista psicológico.

Nesse sentido, é significativa a publicação de Para ler como escritor, de Francine Prose, um inteligente manual de técnicas de leitura, calcado nas lições do New cristicism e sua técnica do close reading, dedicando um bom capítulo para a caracterização, capítulo significativamente intitulado “Detalhe”. Com a tese de que “Deus mora nos detalhes”, Francine Prose não esconde influência de Anton Tchekhov.

Na correspondência de Tchekhov dedicada aos assuntos literários, constam inúmeras lições sobre o ato de descrever. Numa das cartas, diz que, não tendo concepção política, religiosa ou filosófica (a concepção de mundo lukacsiana), limitava-se à simples descrição de seus protagonistas. Em outra carta, mostra ao interlocutor um tipo de descrição bastante corriqueiro: “Uma estante junto à parede abundava em livros variegados”, perguntando-se indignado: “Porque não dizer simplesmente ‘Uma estante de livros’?”. Demonstra preocupação em não desviar a atenção do leitor, em retirar os excessos e dar intensidade à descrição, o que é transmitido em carta para o irmão Aleksandr Tchekhov: “obterás o efeito de uma noite de lua se escreveres que na represa do moinho um caco de vidro cintilava como uma estrela vívida”. Tchekhov não admitia os “detalhes em excesso”, sobretudo se recaírem em lugar comum. Uma forma de evita-los, diz ele, é não descrever o estado psíquico da personagem, mostrar mais do que enunciar: “deve-se fazer com que ele seja aprendido a partir da ação”.

No final das contas, mesmo na atual concepção sobre o papel da descrição, que desconsidera o impacto político do ato de descrever e valoriza a descrição como pormenor, é Flaubert quem mais uma vez paira sobre o assunto, não apenas porque ele serve de modelo aos escritores contemporâneos, mas também pela sua capacidade de descrever com exatidão, buscando a palavra justa (le mot juste). Basta nos lembramos da anedota contada por Ezra Pound em Abc da Literatura:

“Dizem que foi Flaubert quem ensinou Maupassant a escrever.

Quando Maupassant voltava de um passeio com Flaubert, este lhe pedia para descrever alguma coisa, por exemplo uma concierge por quem teriam que passar em sua próxima caminhada, e para descrever tal pessoa de modo que Flaubert a reconhecesse e não a confundisse com nenhuma outra concierge que não fosse aquela descrita por Maupassant”.

Se se trata apenas de uma anedota criada por um rabugento Pound, ou se de fato houve tal diálogo, o que interessa é que ele mostra que Deus está mesmo nos detalhes.

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