A nova poesia russa

Resenha de “A nova poesia russa”, de Roman Jacobson. Por meio desse artigo, apresentamos um dos mais importantes conceitos da teoria literária: a poeticidade. Veremos que, em literatura, o mais importante é lidar com os procedimentos formais.

El Lissitzky: “Acerca de dois quadrados”. 1922.

E se tirarmos de qualquer poesia a melodia, o ritmo e o metro, não sobrarão apenas os discursos? (Sócrates)


Uma ciência da literatura

No começo do século XX um grupo de estudiosos russos lançou bases para a formação de uma ciência dos estudos literários. Até então, o que havia de teoria literária era baseado em aplicações de ciências alheias aos fenômenos linguísticos, (como as ciências naturais, por exemplo), ou, então, em concepções que, restringindo a literatura ao campo da intuição, pareciam evitar qualquer contato científico com as artes literárias, o que as envolveu numa aura de sagrado.  Ainda outras leituras eram feitas sob a influência dos simbolistas, das poéticas antigas, das concepções românticas, idealistas, muitas das quais caindo em subjetivismo. Havia, também, sobretudo no século XIX, leituras feitas pelos críticos de jornais, muitas vezes com vieses biográficos, psicologistas, impressionistas, pautadas no gosto pessoal ou na erudição. 

Jovens críticos russos, porém, em artigos, livros e conferências, passaram a buscar uma concepção científica dos estudos literários, moldando tanto o objeto de estudo quanto os conceitos e princípios que o governam. Tais críticos, reunidos por volta de 1917 com a criação da OPOIAZ (Sociedade de estudos da linguagem poética) colheram metodologias da ciência linguística, acertando, enfim,  não sem certa polêmica e até mesmo imprecisões, um caminho para a criação de uma ciência da literatura.

Esses autores, tão diversos entre si, ficariam conhecidos como formalistas russos,  e um dos seus principais nomes foi Roman Jacobson, de quem resenharemos o artigo “La nouvelle poésie russe”, traduzido em francês por Todorov, a fim de entendermos um dos principais conceitos do grupo, a literariedade, que é o cerne da questão formalista e a grande chave para uma  abordagem científica da literatura. 

Pushkin e Khlebinikov

Não foi Jakobson quem criou o conceito de literariedade (ou poeticidade a depender da tradução), uma vez que se tratava de uma concepção compartilhada pelos formalistas,  mas foi certamente o seu artigo “A nova poesia russa”, escrito em 1919 e publicado em 1921, o primeiro a explorá-lo enquanto conceito. 

O texto é, na verdade, um estudo sobre o poeta futurista Vélimir Khlebinikov. Jakobson chama a atenção para o fato de que era mais fácil compreender um poeta clássico do século XIX, como Alexandre Pushkin, do que um poeta contemporâneo, como o próprio Khlebnikov. Pushkin, segundo Jakobson, era já um chichê, um objeto familiar, com uma produção poética já bem conhecida e domesticada. Não era difícil compreendê-lo, sua poética era já tradicional. 

Mas nem sempre foi assim. Na época em que Pushkin publicou, sua poesia era vista como uma inovação pelos seus contemporâneos.  Os críticos a estranharam, o próprio Pushkin tinha a consciência de que estava rompendo com uma  tradição passada. A forma da sua poesia, em sua época, podia ser percebida

o verso de Pushkin é para nós um clichê; e concluímos naturalmente de que se trata de verso simples. Não foi o que aconteceu com os contemporâneos de Pushkin. Vejamos suas reações, escutemos o próprio Pushkin. Por exemplo, o iambo de cinco pés sem cesura é para nós fluido e fácil. Pushkin, ele o sentiu, isto quer dizer que ele o sentiu como uma forma difícil, como uma desorganização da forma anterior 

Na época em que Pushkin despontou, seus versos eram percebidos, eram sentidos, causavam estranheza ou desfamiliarização. Com o tempo, porém, as inovações acabaram se tornado anestesiadas, tornaram-se familiares aos ouvidos, perdendo, então, força poética. 

Khlebinikov, poeta mais recente, vanguardista, por sua vez seria mais incompreensível aos contemporâneos, porque trazia novidades afastadas de uma norma, da compreensão corrente da linguagem cotidiana. 

O papel dos futuristas 

A poesia futurista, já segundo excelente estudo de Krystyna Pomorska (Formalismo e futurismo), exerceu grande influência entre os estudiosos formalistas. Os futuristas traziam uma  nova concepção de poesia, novas expressões, modificações nos meios e nos procedimentos expressivos, ressaltando muitas das concepções trazidas pelos críticos formalistas.  

Jakobson deixa evidente essa influência quando compara o futurismo italiano com o futurismo russo.  Chama a atenção para o fato de que, para os italianos, os novos eventos sociais e políticos do começo do século XX provocavam a modificação dos meios literários, a renovação da forma artística. Em outras palavra, (e aqui nos baseamos nos nos manifestos de Marinetti), a modernização do mundo exigia uma nova postura poética: 

No avião, sentado no cilindro de benzina, o ventre aquecido à testa do aviador, senti a inatividade ridícula da velha sintaxe herdada por Homero. Eu desejo furioso libertar a palavra, arrancando-a fora  da prisão do período latino (Manifesto tecnico della letteratura futurista, 1912) 

O advento do avião obriga a uma nova postura poética, defende Marinetti, pai do futurismo italiano. O mundo estava mudando e não havia motivo para se manter agarrado às velhas formas poéticas. Ele chega a dizer que um automóvel rugidor era mais belo do que a Victória de Samotracia, em flagrante crítica à arte de gosto clássico. 

A verdade é que não há aqui um liame concreto de causa e consequência entre o surgimento do avião e a abolição da sintaxe. Mas se existe essa relação, para os futuristas russos ela é de outra natureza. E aqui entra a concepção dos poetas russos que influenciará os formalistas, pois invertem a ordem dessa relação mundo objetivo X forma artística. Para demonstrar essa inversão, Jakobson cita o futurista  Kroutchennykh:

Havendo uma nova forma, ela terá, também, um conteúdo novo; a forma determina, portanto, o conteúdo. 

Nossa criação verbal incide em tudo uma luz de novidade. 

[…]

A nova luz, derramada sobre o velho mundo, pode produzir um jogo mais extraordinário

Para os formalistas não são as novidades do mundo que determinam as formas poéticas, mas o contrário: o artista, percebendo que a forma poética não mais choca, não mais surte efeito, não mais se faz perceber, e querendo  inovar seu material de trabalho, vai buscar no mundo uma motivação.

O desgaste da forma clássica, incapaz de suscitar beleza por ter se tornado um clichê, levou alguns poetas a enxergar no mundo moderno a possibilidade para modificar as formas artísticas, encontrando beleza na velocidade dos aviões, na explosão dos motores, nas imagens dinâmicas e simultâneas das grandes cidades. Foi a necessidade de inovar a forma literária (abolindo a sintaxe de longas orações subordinadas, o tom retórico, o excesso de adjetivos e as imagens batidas, em detrimento de palavras soltas, substantivos sem adjetivos, verbos de ação, simultaneidade de palavras pela disposição gráfica, etc, etc), foi essa necessidade de inovação formal o que levou os poetas a valorizarem novos arcabouços de imagens e temas advindos da cidade, da guerra, das máquinas. 

Evidente que essa noção não passaria batida pelos marxistas. Jakobson foi fortemente criticado por Trotsky, que defendia: “Uma nova forma artística considerada amplamente nasce para responder a novas necessidades” (A escola poética formalista e o marxismo). 

O alvo de ataque de Trotsky é  autonomia da literatura em relação às leis econômicas. O processo de determinação da forma literária pela social é defendida pelo marxista, que assim a detalha:

O poeta só pode encontrar o material para sua arte em seu meio social e transmite os novos impulsos da vida através da sua própria consciência artística 

Não se deve ignorar, portanto, o fundo psicológico e social, pois: 

A linguagem modificada e tornada complexa pelas condições da vida urbana dá ao poeta a matéria verbal e sugere ou facilita novas combinações de palavras para a formulação poética de novos pensamentos ou de novos sentimentos que tratam de abrir caminho através da escura coberta do inconsciente

Para o revolucionário marxista, se não houvessem as condições sociais geradas pela cidade, com consequente modificação da linguagem, não haveria possibilidade de mudança formal, já que o arcabouço de novos procedimentos de que se  vale o poeta não existiria se as condições de vida não se modificassem. 

Para Jakobson, porém, as condições sociais trazidas pela cidade não teriam uma relação de causa. O autor é pouco claro nessa passagem, pois fala de uma genérica e não definida “nova forma produzida arbitrariamente”, mas de todo modo ele é claro na relação inversa de que estamos tratando:

Não foi a cultura urbana que comoveu a vista e a cultura do poeta e o reeducou, inspirando-lhe uma nova forma, com novas imagens, novos epítetos, novo ritmo, mas, ao contrário, houve uma nova forma produzida arbitrariamente que obrigou o poeta a buscar a matéria adequada e assim o empurrou na direção da cidade 

Em outras palavras, fica em aberto a relação entre a forma e o conteúdo. Seria o conteúdo uma demanda que modula determinada forma, ou seria a forma que nascendo confere contorno ao conteúdo? 

A verdade é que ambas as posições entram num ponto comum: o mundo moderno oferecia aos poetas um arcabouço de imagens. Seriam elas o estímulo necessário ao poeta para que realize um ímpeto interior de renovação linguística e procedimental? Bem se vê que o Formalismo escandalizou as correntes tradicionais de estudos literários, o próprio marxismo modificaria sua abordagem anos mais tarde, levando mais em consideração os preceitos formais e não vendo a obra literária apenas como mero objeto de uma superestrutura. 

Literariedade 

A tese central dos formalistas é que a linguagem em sua função estética existe na medida em que nos tira do anestesiamento fornecido pela linguagem cotidiana. A relação entre a forma sintática, morfológica e sonora de uma palavra ou oração e seu significado ou sentido é direta e automática na linguagem cotidiana. Mas na poesia essa relação se dificulta, de modo que há um distanciamento entre forma e sentido capaz de nos fazer perceber a própria forma. Não apenas entendemos as descrições de uma batalha quando feita em poesia; percebemos também os torneios das palavras, as quebras de verso, as inversões sintáticas, as sonoridades conferindo ritmos variados. Percebemos as próprias palavras. Para os Formalistas, porém, os efeitos formais que nos tiram do anestesiamento acabam por se desgastar, de modo que é preciso buscar novas formas e procedimentos se queremos manter  a linguagem poética com a sua capacidade de dissociação entre forma e significado. Daí a afirmação de que o poeta, reformando os procedimentos, busca no mundo as motivações para realizá-lo, e não o contrário como o quer Trotsky. A palavra central para essa concepção é a palavra literariedade

Ela é definida dentro de elaboração argumentativa:

Se as artes plásticas são uma conformação do material visual com valor autônomo; se a música é a conformação do material sonoro com valor autônomo; se a coreografia é a conformação do material gestual com valor autônomo, então a poesia é a conformação da palavra com valor autônomo, da ‘palavra autônoma’ como disse Khlebinokov.

A poesia é a linguagem em sua função estética.

Assim, o objeto da ciência da literatura não é a literatura, mas a literariedade, ou seja, aquilo que faz de uma determinada obra uma obra literária

[…]

Se os estudos literários querem se tornar ciência, eles devem reconhecer o procedimento como sua única ‘personagem’. Então, a questão fundamental é a da aplicação, da justificativa do procedimento 

Aquilo que confere à obra o estatuto de literatura é a função poética (explorada em outro artigo de Jakobson, o Linguística e poética),  sendo ela o principal objeto de uma ciência da literatura. É nítido o posicionamento científico dessa formulação, já que, para se definir uma ciência, é preciso antes de tudo definir o objeto. 

Resta entender o que Jakobson quer dizer com “aquilo que faz de uma determinada obra uma obra literária”. O artigo dá a entender que o “aquilo” nada mais é do que os próprios procedimentos. Aliás, a palavra é muitas vezes traduzida como processo, assemelha-se à raiz etimológica da palavra “Poesia”, que deriva do verbo “poien”: uma ação que visa transformar algo, uma fabricação, ou processo que visa à construção de uma obra de arte. 

Procedimentos 

O que interessa ao estudioso da literatura são os fatos verbais. Importa tão somente a maneira pela qual o texto é construído. A combinação é a essência da poeticidade. É pela combinação que podemos distinguir a linguagem cotidiana da linguagem poética. Jakobson cita Mallarmé, que dizia oferecer aos burgueses as palavras que eles estavam acostumados a ler nos jornais, porém combinadas de forma desconcertante. 

Mas mesmo essas novas formas de compor parece ter validade. O desconhecido, que nos tira do amortecimento, passa a tornar-se um dia conhecido, e não o percebemos mais. Surge novamente a necessidade de se rearranjar as formas de compor: 

Chega um momento em que se congela a linguagem poética tradicional, ela deixa de ser sentida, passa a ser vivenciada como um hábito, como texto canônico, em que até mesmo os erros parecem ter se sacralizado. A linguagem da poesia é recoberta por pátina, e nem o tropos  e as licenças poéticas comunicam algo

[…]

A chegada de um novo material e os frescos elementos da linguagem cotidiana são necessários se pretendemos que as construções poéticas irracionais surpreendam, assombrem e comovam novamente

A partir dessas considerações, Jakobson elenca alguns traços da poesia de Khlebnikov, oferecendo-nos uma amostra do que são os tais procedimentos. 

No plano da sintaxe, sempre com o olho voltado para Khlebnikov, afirma que a ausência de verbos frequentemente é uma característica da linguagem poética. 

O procedimento da comparação ganha destaque. Em Khlebnikov a comparação parece não justificada, senão como forma de estabelecer a composição. 

A combinação das palavras também ganha relevância, mas não apenas ela. Também a forma das palavras gera efeito poético. Na poesia diminui-se a mecânica contiguidade entre o som e o sentido. A associação mecânica se reduz ao mínimo, de modo que o feito poética aumenta na medida em que a linguagem poética é feita por dissociação: elementos dissociados formam novas combinações. 

O jogo de sufixos, ou neologismo, também gera poeticidade. Obriga-nos a perceber a forma, geram uma eufonia que se destaca, livra a palavra de sua forma petrificada, faz-nos perceber sua a raiz etimológica, renova seu significado.   

Um dos procedimentos elementares, no entanto, é mesmo a aproximação entre duas unidades. Há tipos de aproximação. 

No plano da semântica, destacam-se: o paralelismo, a comparação (que é um caso particular de paralelismo), a metamorfose (paralelismo projetado no tempo), a metáfora (paralelismo concentrado em um ponto). As variantes eufônicas desse procedimento são a rima, a assonância e a aliteração. 

O jogo entre sinônimos e homônimos reincide na coincidência ou não coincidência entre a unidade significativa e a palavra. Jakobson chama a atenção para um procedimento bem quisto pelos futuristas, que é utilizar a palavra simultaneamente em seu sentido literal e metafórico. 

Desnudar a rima, livrando a sonoridade de sua semântica é outro procedimento. 

Podemos perceber que todo movimento que fizermos num texto poderá gerar algum efeito expressivo. Aqui o formalismo e a estilística caminham juntos. O formalismo se distingue na medida em que reforça a diferenciação entre a linguagem cotidiana e a linguagem literária. Para os formalista essa distinção é essencial se quisermos identificar as propriedades inerentes ao discurso poético. O efeito poético, ou a literariedade, é tudo o que se distingue, em termos de efeito e percepção, da linguagem cotidiana. 

Tais apontamentos foram importantes para que os estudos literários dessem mais atenção às questões formais, não vendo na literatura apenas o resultado de questões históricas, sociais e ideológicas, além de se chamar a atenção para a materialidade do texto. 

Podemos frequentemente observar na história da poesia de todos os tempos e países que para os poetas importa somente o som 

 

Leave a comment

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.