Dois gigantes da teoria literária

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Damaso Alonso e Ernst Robert Curtius

Tudo começa quando, em “Poesia Arabigoandalusa”, Damaso Alonso resolve usar versos do monge Gonzalo de Berceo (primeiro poeta a escrever em castelhano) com a intenção de ilustrar alfumas ideias:

Por volta de 1243 Gonzalo de Berceo vivia em seu frio norte. Sempre o imaginamos escrevendo, afoito, ante o terror da noite vindoura:

Os dias não se estendem, anoitecerá tão logo:

Escrever nas trevas é um mister penoso…”.

O crítico cita Gonzalo de Berceo apenas para aproveitar a imagem do cair da noite, destacando a angústia do poeta perante a noite que se anunciava, já que, no escuro, ele não poderia continuar trabalhando e por isso devia se apressar. Para Damaso Alonso, a passagem era tocante por ser símbolo do árduo trabalho intelectual.

Foi então que outro gigante da literatura, o teórico alemão Ernst Robert Curtius, num ensaio sobre os lugares comuns literários (traduzido recentemente por Sylvia Tamie Anan) acaba citando o ensaio de Damaso Alonso, discordando do posicionamento sobre os versos de Berceo. Curtius não concordava que Berceo estivesse angustiado com o anoitecer precoce do “frio norte” da região em que morava. Para ele, a imagem do anoitecer não foi escrita para retratar a experiência pessoal do poeta; na verdade, ela nada mais é do que a retomada de uma figura da tradição literária, a terminat ora diem.

O artigo de Curtius, “Retórica Antiga e literatura comparada”, elenca a ocorrência da imagem do cair da noite em outros poetas (Sigeberto de Gembloux, Walter de Châtillon, até mesmo de Cícero) para demonstrar que a imagem era um recurso retórico típico dos séculos XI e XII. Berceo teria escrito os versos no seu “Vida de Santa Ória” com o objetivo de fechar a introdução. Não somente no frio Norte a imagem do cair da noite era cantada, também no quente Sul de Cícero, nas Éclogas virgilianas, entre outros. Para Curtius, a melhor maneira de abordar os versos de Berceo seria levantar as ocorrências da imagem do cair da noite na tradição literária e investigar a influência na sua obra.

“…também as éclogas “espirituais” da Idade Média latina […], nos quais a conversação de pastores fictícios serve a ensinamentos morais e religiosos, utilizam o mesmo artifício. Tudo isso deve estar atrás dos versos de Berceo. O ‘frio norte’ teria então plagiado seu clichê retórico-poético dos países mediterrâneos”

O artigo de Curtius não ficou sem tréplica. Damaso Alonso dedicou um ensaio apenas para tratar dos lugares comuns, dedicando-se à imagem do anoitecer em Gonzalo de Berceo, demonstrando a fragilidade dos argumentos de Curtius. Em “Berceo e los topoi” (publicado em “De los siglos oscuros al de oro”), Alonso une erudição, ciência e intuição poética para afirmar que, de fato, o poeta clássico tinha mesmo a preocupação em não projetar a subjetividade nos poemas, porém, o poeta medieval não mantinha a mesma prática:

“No poeta medieval são frequentemente produzidos rompimentos na tela da criação estética, e na ruptura aparece a face do escritor com sua ingenuidade, com seu oficio, com seus dilemas ou sua velhice, enfim, suas necessidades”

Ao copiar um poema, era comum que o poeta medieval se colocasse na tela, sobretudo entre as partes da obra copiada. São pequenas frases ou mesmo versos em que o poeta tece comentários, muitas vezes sobre o processo de criação, reclamações sobre o cansaço do trabalho, angústias, anseios, remendos, desejos, correções.

“Aqui não há que falar em ‘tópico’ do cansaço final”, diz Alonso a propósito de outro poema de Berceo, “o poeta está cansado já no momento de sentar-se para escrever: é velho e trabalha muito. É de si mesmo que ele fala”. E arremata com uma importante lição: “Retenhamos agora isto: o uso dos tópicos tradicionais convive perfeitamente com a expressão individual do escritor”.

Por ter dedicado muitos versos ao preâmbulo da sua obra, Berceo estava apressado em terminar, numa luta contra o tempo. Devia, portanto,  aproveitar a luz do dia.

Alonso critica o trabalho dos pesquisadores, conhecidos como fontistas, os quais levantavam fontes literárias, imagens e tópicos, montando um verdadeiro painel de referências. Importante como ferramenta, diz Alonso, não como trabalho em si, porque o mais importante é capitar a unidade da obra. O mais importante é captar na obra tudo o que for unívoco, pessoal, individual. Importa apenas a íntima originalidade.

Berceo teria seguido as fórmulas dos demais poetas da época, mas o que o pesquisador de literatura deve se perguntar é: “Porque [Berceo] é um poeta encantador, porque nos emociona a sua voz hoje, setecentos anos mais tarde, o que o faz peculiar, inconfundível? Estas são para mim os temas essenciais da indagação literária”.

O mais belo desse debate é que ambos os autores enxergam de maneira diferente o mesmo objeto. Curtius, com sua grande erudição e sua técnica de análise (já trabalhada em “Literatura europeia e Idade Média latina”) tem diante dos olhos as imagens poéticas vistas panoramicamente, numa rede de influências, rupturas e retomadas ao longo da história. Já Damaso Alonso tem o olhar privilegiado de quem era, ele mesmo, um poeta, um dos mais significativos de sua geração. Sua preocupação é menos a retomada das imagens poéticas e mais o sentido que elas geram no universo do autor.

2 thoughts on “Dois gigantes da teoria literária

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