O lobo da estepe

Hermann Hesse

Em “La metamorfose del lobo estepario”, Mario Vargas Llosa destaca como o livro de Hermann Hesse, lá pelos idos dos anos sessenta, foi ressignificado ao ponto de fazer do autor um representante dos jovens inconformados. Quando concebido, o romance se pretendia uma espécie de estudo do sujeito moderno, o que era feito por meio da despersonalização da personagem principal.

Um tema interessante é a transformação desse protagonista. Misantropo, neurastênico, angustiado, solitário e encerrando em si um rancor com o mundo, Harry Heller acaba rompendo o espaço claustrofóbico do próprio eu, partindo para uma aceitação do mundo que ele antes desprezava. Essa passagem, aliás, não se deu pela cultura letrada, pela erudição, pelas aventuras, pela influência dos livros ou da música, tampouco se deu à sombra de Goethe ou Mozart; deu-se pelo auxílio da meretriz – a eterna imagem feminina – uma mulher que, mergulhada no mundo, serviu-lhe de guia para a passagem à vida mundana e real.

O movimento do intelectual que se livra do fardo pesado para viver uma vida mais leve é praticamente uma tópica literária. Está presenta em Os frutos da terra, com o apelo para se abandonar a literatura carregada e mórbida dos decadentistas, elogiando-se a vida simples e mais próxima da natureza – o autor chega a se direcionar ao leitor hipotético, aconselhando-o a abandonar o livro, em prol de viver a vida real: “É preciso, Nathanael, que queimes em ti todos os livros”. Também está presente em A morte em Veneza, com a figura do bem-sucedido intelectual alemão em plena maturidade, que, ao descobrir a força incontrolável do desejo, vê abalados a fortaleza e autocontrole – a figura do seu objeto de amor encarna a vida dionisíaca, em detrimento da sisudez de vida metida em livros. Até mesmo em um romance mais moderno, o Zorba, o grego, a tópica aparece, por meio da intelectual inglês que se deixa influenciar por um homem do povo, o qual, mais maduro e experiente, está mais próximo da vida prática. Em todos esses livros há o contraponto entre o mundo letrado, de vida pesada e desejos reprimidos, e o mundo prático, de vida leve, fútil, chã, mais intensa.

Assim parece ter sido planejado o livro de Herman Hesse, mas Llosa aponta uma mudança de curso na recepção. No contexto dos anos sessentas, o livro tornou-se consolo de leitores deslocados, de jovens solitários, dos que se sentiam verdadeiros lobos da estepe. O próprio Llosa foi testemunha dessa geração:

“Curiosamente, este romance se converteu numa bíblia para o incompreendido e soberbo, para o que se sente superior ou simplesmente apartado da sociedade e do seu tempo”

Em vez do Harry Haller convertido à vida, o que tocou os leitores foi o Harry Haller da primeira parte do romance, o homem deslocado, ao homem cultivado com os valores antigos.


No nosso ponto de vista, o livro também pode ser lido como retrato de uma passagem entre épocas, o momento em que o mundo passa a se configurar como sociedade de consumo. A cultura erudita, representada pela música séria, pela grande arte pictórica, pelas vanguardas, pela grande literatura, passa dar espaço às formas mais leves e mais superficiais, sob a égide da Indústria cultural e sua maneira ideológica de controlar e configurar as massas. O livro capta a vida de um sujeito que está no limiar das duas épocas distintas e precisa aceitar as transformações, a fim de que não se apague em obsolescência programada. O destino da personagem principal seria o destino de uma mentalidade, de uma época agora extinta.

Talvez os leitores mais progressistas vejam nas mudanças do protagonista algo de positivo, uma vez que a vida muda, o mundo muda, e conservar valores antigos apenas resulta em enrijecimento e até mesmo em morte do próprio eu. Talvez os conservadores vejam na mudança de Heller uma perda substancial de um mundo que entra em fraca decadência, saudosistas de um passado supostamente superior. Nos lemos o livro como registro de um mundo que nasce como superficialidade, simplificação, alienação e massificação.

A pergunta que fica é: o Lobo da estepe pinta essa transformação como algo positivo ou negativo? Há no livro, como o quer Lossa, uma visão positiva dessa mudança de paradigma histórico, ou se trata na verdade de uma crítica, uma lamentação pela decrepitude ou decadência cultural? O livro lamenta a descentralização do ego e sua segurança ante a natureza, ou comemora a quebra do eu enrijecido e artificial para o eu mais próximo da vida dinâmica e simultânea? A resposta é: jamais o saberemos. Parodiando Borges quando falava de Dante e do falso problema de Ugolino, Nunca o saberemos porque Herman Hesse não quis que o soubéssemos.

Hoje o romance, mais distanciado de nós, ganha formas mais difíceis de se compreender. Não é possível interpretativas peremptórias, uma vez que uma das principais características é justamente a ambiguidade: estamos falando e um romance, não se um tratado sociológico. Recorremos sempre a Borges, para quem a literatura é o espaço da ambiguidade, do desconcertante convívio – e não conciliação – dos elementos contraditórios, afinal, ele afirma, no espaço da ficção não existem respostas inequívocas.

O livro de Hesse trata, sem dívida,  da vida se impondo ao sujeito moroso e ocluso, mas, ao mesmo tempo, trata também da perda da profundidade e do orgulho do homem erudito, de raiz idealista. As duas coisas ao mesmo tempo. Ademais, fazer afirmações sobre um livro carregado de ironia é um risco fadado ao fracasso – e que irônica a gargalhada de Goethe a atravessar o espaço!

Seja o que for, o livro de Herman Hesse é um vivo, mais vivo do que nunca, justamente graças à essa abertura desconcertante, às suas perguntas sem resolução. Graças, em suma, às suas fraturas.

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