Arte e fascismo

Albert Janesch: “Esportes aquáticos”. 1936. Exemplo de estética nazista, representa-se a falsa superioridade física do homem ariano. Uma das características da estética nazista é a idealização. Ler o ensaio de Suzan Sontag, “Fascinante Fascismo”, no qual analisa o álbum “Os Últimos Nuba”, de Leni Riefenstahl.

Recentemente a revista “Serrote” lançou “Doze ensaios sobre o ensaio”, antologia que nos mostra em perspectiva o potencial desse gênero tão importante em uma época como a nossa, em que a profundidade e o não dogmatismo do pensamento se fazem tão necessários.

A antologia reforça que, por mais difícil seja definir o ensaio, algumas de suas características principais são inequívocas: não se fecha por completo, não se direciona em caminho unívoco, levanta problemas sem necessariamente buscar soluções, é possível acompanhar os movimentos intelectuais do autor, as oscilações de seus argumentos, circundando o objeto em vários ângulos sem o atingir integralmente. O ensaio não adota a metodologia científica e, por isso, chega aonde a ciência, limitada, jamais chegaria.

Pensando nessas características, podemos dizer que “Arte e fascismo”, de Anatol Rosenfeld, é exemplo elevado do gênero ensaístico. Além do estilo artístico, de uma sensibilidade e erudição profundas, o texto tem beleza, cuja força motriz são as incertezas a assolar o crítico literário. O ensaio tateia respostas para uma questão muito atual em nossa época, o fato de que grandes obras artísticas foram compostas por monstros. Autores ligados ao fascismo e ao nazifascismo figuraram entre os maiores escritores de sua época.

Rosenfeld é um verdadeiro ensaísta. Enquanto a maioria das pessoas, como jornalistas e até alguns acadêmicos, esperneiam-se ao não saber o que fazer com as obras feitas por monstros (“O que fazer com a arte de homens monstruosos?”), Rosenfeld vai além e traz uma questão de quem realmente conhece a arte. Para ele, não cabe nos questionar se devemos ou não aceitar a existência das obras de arte feia pelos monstros. A grande questão a ser enfrentada é a seguinte: se assumimos a arte como objetivação da vida, como é possível ela ser realizada pelos que negam a vida?

***

Saber o que fazer com a arte de homens cujas ações pertencem ao ilícito foi debate no pós guerra.  Alguns dos grandes escritores do século XX eram simpáticos ou adeptos ao fascismo e ao nazifascismo, autores como Ezra Pound, Ungaretti, Louis-Ferdinand Céline, Knut Hamsun. No Brasil o debate chegou com Anatol Rosenfeld, que, com erudição, sensibilidade e profundo conhecimento sobre a arte, ofereceu-nos verdadeira aula sobre a realidade humana e as leis da estética.

Em rigor, como bem anota Jaime Ginsburg (Por um leitor com dúvidas – notas sobre arte e fascismo, de Anatol Rosenfeld) o ensaio de Rosenfeld não toma posições claras e inequívocas, o texto possui as marcas das hesitações, das angustias intelectuais, típicas do gênero ensaio. Mas há algumas linhas de um pensamento dominante, o qual, diga-se de passagem, está longe de ser a ideia principal. O movimento central do pensamento de Arte e fascismo é o trabalho com o conceito de sublimação da psicanálise. O autor investiga a possibilidade de haver no fator estético algo que elimine ou transforme o ilícito.

Ele vai além do argumento de que a arte é objeto autônomo em relação ao homem que a cria, uma vez que ambos estão relacionados, pois o ideal estético coincide com o ideal humano, já que ambos são movidos por instintos opostos (ser / dever, natureza / espírito, liberdade/necessidade) numa luta para se deslocar entre tais impulsos contrários, ou mesmo mantendo-os em equilíbrio. Se o homem é um ser que constantemente se digladia com tais forças impulsivas, sempre em conflito consigo mesmo, a arte por sua vez, devido a sua capacidade de harmonização – devido à forma – acaba por captar tais forças, tornando-se “expressão de uma imensa esperança […] anseio de uma infinita aproximação”. A vida é fluxo contínuo, capaz de ser captada pelo homem que, através da arte, consegue fixá-la numa forma objetiva. E continua:

“arte e fascismo se encontram em campos opostos, como duas intensões hostis, como expressão aquela do legítimo e este do ilegítimo do espírito vivo da humanidade. Como existem, entretanto, verdadeiras obras de arte criadas por adeptos do fascismo, devemos concluir que haja uma profunda divergência entre a obra e seu criador” (p.193)

A arte é uma realidade diversa do seu criador. Enquanto o criador é uma pessoa psicofísica em situação social, a arte é uma objetivação espiritual sem existência psíquica, uma objetivação que depende, para viver, dos atos psíquicos de um público. Tem suas leis próprias, fala por meio de símbolos, ganhando camadas de significação com o passar do tempo “A obra de arte tem a sua própria autonomia e uma ‘vida’ diferente de seu autor. Chamar uma obra de arte imoral seria tão ridículo quanto chamar um triangulo injusto” (p.194).

A partir daí, Rosenfeld começa a explorar a ideia de sublimação. Mostra que os grandes artistas sofriam de toda uma sorte de problemas psíquicos ou de adaptação social, neuroses e patologias, de modo que podemos pensar a arte como produto de uma mente em conflito, vetor de tensões intensas.

Todos esses argumentos servem neste ensaio para mostrar que existe, sim, uma relação entre o autor e sua obra, entre o artista e a arte, mas tal relação é extremamente complexa, não é algo dado, tampouco direto como se supõe hoje em dia. Tanto é que, mostra-nos o ensaísta, não podemos estabelecer a personalidade de um autor anônimo ou desconhecido ao analisarmos sua obra artística, do mesmo modo em que é possível o contrário, ou seja, é possível com a biografia do autor compreender melhor a obra de arte. Deve-se levar em consideração porém, nesse segundo caso, o fator mais importante dessa relação: “os elementos psíquicos sofreram na passagem para o ontos estético uma transformação extraordinária”. Aqui reside a ideia da sublimação como fato essencial nesse assunto: “Em inúmeros casos a obra é uma sublimação, é expressão de saudades e anseios, sonhos e divagações”. Por isso é que podemos flagrar na obra arte ora a representação da patologia do autor, ora uma harmonia que não se encontra na vida pessoal do artista, tudo passando pelo crivo da articulação, da decantação estética.

Por ser captação do fluxo da vida, a arte não pode ser anti-vida, por isso não é possível uma arte fascista, no máximo pode haver uma arte que represente o fascismo. A essência da arte independe das contingências do seu criador, e isso possibilita que haja autores fascista e nazifascistas com obras de arte magnificas, pois elas, no final das contas, os desmentem. Ao falar de Ezra Pound, Rosenfeld resume sua tese: “Pound, o poeta, é o Pound, o homem […] Mas a sua obra, sendo uma obra de arte, agiu como um filtro e transformador”.

A frase final do ensaio, como toda imagem literária, pode nos servir como uma espécie de imagem síntese, uma resposta para nossa consternação diante dos homens que, sendo monstros, são ainda capazes de produzir bela obras de arte. É que na arte e na criação humana operam leis que ainda não nos são compreensíveis, apenas vislumbradas:

“A arte realiza milagres. No seu reino, até o lodo reflete as estrelas”.

Leave a comment

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.