A volta do parafuso

O que aprendemos com A volta do parafuso de Henry James? Simplesmente que a verdade não existe, que ela é perspectiva e depende das versões que lhe damos. Onde entra a literatura nessa história? É o que leremos nesta resenha crítica.

Svetlana Telets: “A mulher da chuva”.

Na vida real (ensina-nos Jorge Luis Borges), sempre que nos deparamos com alternativas, escolhemos uma em detrimento de outra. Na ficção, por sua vez, a coisa funciona de outro modo, já que no “ambíguo tempo da arte” nenhuma das opções é superada: “Hamlet, nesse tempo, é são e é louco”. A ficção funciona num tempo diverso da história, porque admite os contrários. A incerteza, a imprecisão e a ambiguidade lhe são inerentes: “essa ondulante imprecisão, essa incerteza, é a estranha matéria de que é feita”.

Ideia semelhante nos traz Octavio Paz, para quem a literatura comporta, em um só espaço, o contraditório.  Se na dialética a tese e a antítese são superadas por um terceiro elemento, na imagem poética elas se mantém intocadas. Tese, antítese e síntese mantém autonomia entre si. Ele defende que a imagem poética, por meio das oposições, conserva a complexidade do real tal como o apreendemos na percepção: “A operação unificadora da ciência mutila-as e empobrece-as. O mesmo não ocorre com a poesia. O poeta nomeia as coisas: estas são plumas, aquelas são pedras. E de súbito afirma: as pedras são plumas”.

Em A volta do parafuso de Henry James podemos ver como funcionam o ambíguo tempo da arte e o tenso convívio das imagens opostas.

Quando responde a um leitor que o criticara pela escassa caracterização de uma das personagens, James afirma: “Era suficiente o bastante que o plano geral de nossa jovem mantivesse seu registro desobstruído de tantas anomalias e obscuridades intensas”. Isto quer dizer que Henry James evitou caracterizar sua narradora como uma mulher com anomalias ou traços obscuros, pois tais traços trairiam alguma intencionalidade ou explicação para suas ações. Se a personagem se depara com fenômenos parapsicológicos, basta mostrá-la como autoridade no assunto, sem aumentar ou diminuir a dose certa: “e eu não teria chegado a tanto se houvesse atabalhoadamente tentado dar-lhe mais”.

O resultado parece ter dado certo. Desde sua primeira publicação em 1898 pela revista Collier’s Weekly e da publicação definitiva em Os papeis de Aspern (1908) o romance recebeu uma enorme quantidade de interpretações, a maior parte tocando no problema da ambiguidade. Tanto é assim que há pesquisadores que dividem as interpretações da obra em dois grupos, aparicionistas e não-aparicionistas, ou seja, entre os que interpretam a versão da narradora como algo factível e os que veem nela traços de neurose e fantasia.

Os que defendem a sanidade da governanta respaldam-se no fato de que ela descreve Quint, uma das aparições, sem nunca ter ouvido falar nele. Os que defendem a neurose da narradora, a não confiabilidade de sua narração, apegam-se em algumas passagens para mostrar que as aparições são frutos da sua mente.

Ambos os lados têm munição para sustentar suas teses, colhendo elementos do próprio texto. E isso somente é possível porque o texto mantém ambiguidade e sugestão, reforçando a tese de que o signo poético mantém a pluralidade de significados.  O ponto de vista escolhido, numa narração indireta, feita por uma personagem pouco caracterizada, são aspectos formais que, associados, impedem uma interpretação única.

No jargão enxadrístico se diz que o jogador profilático é aquele que antecipa as jogadas do adversário. Tomando a palavra de empréstimo, pode-se dizer que James é um escritor profilático.  Ele deixa claro, nos prefácios, estar jogando com os leitores, demonstra ter consciência de que, para acentuar o terror, é preciso tornar o texto o mais sugestionável. Não especificando o terror, o leitor o fará por conta –  daí seu “vívido interesse numa possível sugestão e processo de adumbração” com o intuito de “expressar melhor o senso das profundezas do sinistro sem o qual minha fábula perderia miseravelmente o vigor”. Na tentativa de erigir uma narrativa pautada em adumbração, ou seja, numa representação velada de um objeto, Henry James posiciona as peças de modo que mantém tensão na narrativa. Criar sugestões deixa o texto mais aberto, restando ao leitor o complemento das lacunas. No caso do romance, o terror e maldade não são descritos com linhas imprecisas justamente para que os leitores preencham texto com o próprio terror, com a própria noção de maldade. 

O romance questiona a realidade. Ela existe de forma objetiva, ou ela nada mais é do que projeção de quem a percebe? Do ponto de vista estético, não existe resposta definitiva, pois tudo é possível no espaço da ficção, onde Hamlet é são e é louco, Ugolino devorou e não devorou os filhos, Capitu traiu e não traiu Bentinho, a pedra é leve e a pluma é pesada.

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